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Ana Cleide no dia do seu aniversário de 23 anos |
Há um tempo não escrevo. Dizia que era a correria do dia a dia ou até mesmo as matérias engessadas que colhiam minha criatividade. Tudo balela, confesso. A verdade é que escrever necessita honestidade. É preciso abrir o coração, pensar em algo e colocar sua alma em cada tecla tocada e eu, sinceramente, não estava pronta para tamanho feito. Minha cabeça estava um turbilhão e meu coração mais bagunçado do que casa pós festa e escrever me lembrava disso. Lembrava que eu precisava me arrumar, organizar e, enfim, compartilhar meus sentimentos com alguém. Há alguns dias me pedem para escrever sobre empatia. Nossa, que missão difÃcil. Como escrever sobre algo que busco ter um pouco mais a cada dia e não sei se consigo? Porém, irei tentar - para alegrar o leitor - e me aproximar mais desse sentimento tão nobre. Para isso, contarei a história da menina/mulher que me fez descobrir o quanto esse sentimento é prazeroso e o quanto ele nos aproxima das pessoas.
A personagem da minha história se chama Ana Cleide. Nome composto para combinar com a moça que o carregava. De pele clara e marcada por acnes, sorriso tÃmido, olhos castanhos e tristes, foi assim que a conheci, no Hospital das ClÃnicas de Pernambuco. Não sei como era sua aparência antes, mas sabia que era vaidosa e adorava um batom. Lhe conheci graças a minha mãe que me contava sua história e o quanto ela queria me conhecer. Ana devido a Doença do Neurônio Motor, primo da Esclerose Lateral Amiotrófica que para pouco a pouco os músculos, não conseguia movimentar os membros superiores, nem os inferiores e falava com muita dificuldade, já que a doença afetava seletivamente as células que controlavam a atividade muscular voluntária, incluindo andar, falar, respirar, deglutir e o movimento geral do corpo.
Escolhi uma data especial para lhe conhecer pela primeira vez: seu aniversário de 23 anos. O hospital estava em festa. Médicas, técnicas de enfermagem, enfermeiras, fisioterapeutas, nutricionistas... todo mundo estava lá para comemorar mais um ano de vida daquela paciente que cativava a todos. E, como era de se esperar, também cativou a mim. Não sei o que ela tinha, mas com certeza despertava em cada um que lhe conhecesse a bendita empatia. Todo mundo se mobilizou. Ela tomou banho, colocou o vestido roxo, foi para cadeira de rodas e ai começou a sessão de embelezamento. O cabelo foi penteado e enfeitado com uma tiara, a pele foi coberta com base, pó, sombra, tudo que tinha direito e na boca o batom. Ela estava radiante e lembro, como se fosse hoje, o brilho que vi nos seus olhos. Depois da festa, de chorar com os depoimentos, com as músicas e de falar o obrigada que tinha ensaiado com a fonoaudióloga, Ana se deitou novamente na sua cama e fui lá para conversarmos. Debrucei ao seu lado e ela começou a me contar sobre a sua história. E eu, tentando ler seus lábios, prestava atenção de forma atenta aos detalhes.
Sua vida foi sofrida. Rejeitada pelos pais biológicos, encontrou em uma famÃlia no interior de Buique o abrigo que uma criança precisa. Porém, nada seria tão fácil. Bonita, ela adorava se "pintar" e sair com as amigas. Por ser nova, sabia que tinha o mundo e a vida pela frente. Porém, um acidente de moto aos 21 foi o gatilho que colocou uma pausa em tudo isso. Não me recordo muito bem os detalhes, mas ela me disse que tinha sido com o namorado e que depois do acidente tudo mudou. Ela sentia dores horrÃveis e toda vez que ia ao hospital, voltava sem respostas. Depois de tantos questionamentos, começou um tratamento experimental que custava o "olho da cara", assim me falou, com imunoglobulina. E, mais uma vez, a vida lhe deu outra rasteira. A medicação tinha que ser tomada regularmente e era a sua irmã adotiva quem recebia as ligações do hospital avisando o dia em que ela deveria ir tomar a dose. Com o medicamento, as dores cessavam. Porém, na penúltima dosagem sua irmã avisou que o medicamento não tinha chegado. Foi um choque. Aos 22 ela adoeceu e a sua vida no interior foi trocada por idas e vindas na UTI.
Onde passava ela fazia amizades, fato comprovado no quadro que tinha ganho naquele mesmo dia com várias fotos ao lado daqueles que cuidavam dela. Com os movimentos do braços comprometidos, Ana começou a pintar com a boca, fazia musicoterapia e, apesar de exigente, fazia toda a equipe sorrir. Ela se superava e se reinventava a cada dia. E quando a tristeza e as dúvidas do porquê acontecer aquilo consigo assolavam seu coração, ela pedia para alguém cantar uma música evangélica ou orar.
Conhecer Ana Cleide foi um presente. Acredito que Deus coloca as pessoas certas, nos momentos certos em nossas vidas. Antes não me preocupava com a dor do outro, carregava apenas a minha e já era o suficiente. Até que lhe conheci. Olhar para os seus olhos e me ver refletida me fez pensar o quanto era doloroso passar por tudo aquilo e eu sofri. Sofri por não poder lhe fornecer nada além da minha amizade, sofri por não poder lhe tirar daquele hospital pra tomar um sorvete e conversar sobre garotos. Sofri pela sua juventude tolhida ali dentro coberta de aparelhos. Sei que o que senti não chegou nem perto do que ela sentia todos os dias, mas com ela aprendi a deixar meus problemas de lado e pensar no outro, na dor e no bem estar. Por isso, hoje, quando me falam de empatia só consigo lembrar dela, do seu sorriso, dos seus olhos brilhantes e da forma como ela me deixou entrar em sua vida.
Em agosto deste ano fará três anos que Ana virou um estrela ao lado de Deus. Ela me mudou quando me conheceu e me mudou ao me deixar. Aprendi a lidar com começos e fins e dar o devido valor que eles merecem. Há pessoas que nascem com o objetivo de nos ensinar a sermos melhores e ela foi uma dessas pessoas. Sai do hospital no dia do seu aniversário com um misto diferente de emoções. Tinha amor, esperança, tristeza e empatia. A partir dali fiz dela uma amiga, inspiração e poço de esperança. Quando ela se foi, senti que seu propósito aqui na terra tinha chego ao fim, pois depender das pessoas para tudo e de aparelhos para viver lhe roubava o brilho dos olhos. Meu coração apertou de tristeza e gratidão, pois ela me fez uma pessoa melhor, mais humana. Ela me mostrou o quão é fácil sentir a dor do outro, o quão é fácil procurar o bem no outro, por mais difÃcil que isso seja. Me mostrou o quão é simples olhar nos olhos de alguém e encontrar sua alma, ver suas dores e entender suas mágoas. E, devido a isso, procuro todos os dias encontrar o mesmo que encontrei em Ana nos outros.