CRÍTICA - Maria Bonita: tudo o que não nos contaram sobre o cangaço

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Recordo-me com exatidão dos meus primeiros dias de aula. Todo recomeço era marcado com a minha avó, comumente chamada de Dona Ana, e o meu padrinho, apelidado de Zé boi, entrando em meu quarto, pontualmente, a cantarolar. Os dois repetiam alegremente: Acorda, Maria Bonita. Levanta, vai fazer o café. O dia já vem raiando e a polícia já está de pé.
O ato era a forma dos dois de me acordar para mais uma nova etapa de maneira divertida e revigorante. Com o costume, surgiu o meu primeiro contato com a figura de Maria Bonita.

Nordestino que se preze conhece o lendário Virgulino Ferreira, conhecido como Lampião, seja pela história ou filmes, novelas e peças que fazem referência à figura. A primeira recordação que tenho do personagem é a do filme "O Auto da Compadecida", que não condiz nenhum pouco com a realidade. Na película baseada na obra de Ariano Suassuna, o cangaceiro conta a história de que entrou para o cangaço porque policiais tinham matado seus pais. Com o intuito de vingança, o fiel a 'Padin Ciço' teria entrado para vida bandida.

O famoso Lampião retratado no filme O Auto da Compadecida (2000)


Essa era a versão que sustentava e acreditada até então. A de Maria Bonita é tão remota quanto a do seu marido. Conhecia-a, principalmente, pela música e, com o passar dos anos, pelas tantas marcas que adotavam seu nome como slogan. Até que me deparei com o livro "Maria Bonita: Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço" da jornalista Adriana Negreiros. A obra despertou em mim lembranças da infância que até então estavam sem respostas. Quem realmente foi Maria Bonita?

Maria de Déa, conhecida como "Maria Bonita" após sua morte, e Virgulino Ferreira, vulgo Lampião, em um raro momento de intimidade 


Minha familiaridade com  uma parte tão importante do nosso passado introduz um livro rico em cultura e informações. Jornalista, a autora consegue nos transportar para o sertão nordestino e nos deixa a par de toda crueldade e chacinas causadas por cangaceiros e macacos, como eram apelidados os policiais na época, além de tirar a visão romantizada do tal 'Robin Hood' do sertão com um trabalho investigativo sobre o que realmente aconteceu durante as décadas de 20 e 30 na Caatinga brasileira.

Com uma escrita narrativa, o livro foca principalmente nas falácias e histórias propagadas sobre as mulheres no Cangaço, tendo a figura de Maria do Capitão como norte para o desenrolar da história. Nele, descobrimos o porquê de Lampião, cabra valente e sem temor a homem nenhum, acatar as ordens e apelos da esposa e o motivo dele ter aceitado, em uma época onde mulheres serviam apenas para cozinhar e cozir, a presença feminina no bando.

A par de toda e qualquer imprecisão ideológica, a escritora deixa os relatos para que o leitor tome suas próprias conclusões sobre o banditismo rural. Dando relatos fidedignos sobre o que acontecia com os cangaceiros, sertanejos, policiais e governo.


Fatos, parecidos com os que aterrorizam os filmes de terror, marcam a história do cangaço, bem diferente da visão de justiceiro dos pobres que alguns produtos da Indústria Cultural nos passam. Estupros, degolamentos, vinganças bárbaras são alguns dos exemplos, então quem tiver estômago fraco, sugiro que não leia. Com isso, surge a necessidade de conhecermos relatos documentais do que nos é apresentado diariamente envoltos em obras ficcionais.

Quando encontrados e mortos, os cangaceiros foram degolados, prática comum naquela época, e suas cabeças expostas como troféu. A cabeça de Lampião, chefe do bando, está no primeiro degrau sozinha, já a de Maria Bonita no segundo degrau no meio


A história está repleta de heróis que não existiram, mártires dignos de raiva e vilões com honraria, dependendo de quem a escreve, por isso é difícil retratar o que não se foi visto ou ouvido e lapidar as inúmeras informações que acumulam-se no decorrer dos anos, coisa que Adriana faz com maestria no livro. Por fim, "Maria Bonita: Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço" nos mostra o quanto somos inertes como a nossa cultura e os nossos acentrais, além do quanto somos influenciados por produtos midiáticos. Leitura recomendada para quem gosta de história, cultura e doses de realidade.

Nota Larissa de Qualidade: 8.9 ⭐⭐⭐

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