Se vicie em viver

10:00

 
  Era mais um dia normal na minha vida monótona. Larguei do trabalho e esperei cerca de uns 30 minutos o ônibus, quando ele passou estava vazio e me surpreendi com o fato. Entrei e sentei. Após umas 4 paradas um homem subiu no veículo. Aparentemente ele me causava medo, de aparência relaxada, roupas rasgadas e sujas, barba sem fazer e um odor desagradável. No entanto, olhando em seus olhos pude ver a tristeza que rondava sua mente e coração. Pagou a passagem apenas com moedas e sentou umas duas cadeiras a minha frente. Antes de se sentar me encarou e pude ver ainda mais de perto o sentimento estampado em sua face. Na hora, meu coração se apertou e a minha empatia despertou minha curiosidade para lhe perguntar o que estava havendo. Mas por medo, permaneci em meu assento. O homem colocava as mãos no rosto como se quisesse esconder a si mesmo e após presenciar um pouco daquela cena não aguentei e me aproximei do seu assento. Ele estava na direita e me sentei ao lado, na cadeira a esquerda. Ele sentiu minha presença mas não me olhou. Minha voz saiu um pouco rouca quando lhe perguntei se ele estava precisando de ajuda. Ao levantar o seu olhar, pude ver um misto de surpresa e ternura. Ele me encarou por um tempo e me disse que infelizmente, eu não poderia lhe ajudar. Que naquela altura do campeonato, nem ele mesmo poderia. Contive a curiosidade de perguntar o porquê e me contentei a um "Tem certeza?". Ele me disse que sim e eu voltei para onde estava. 

      Ao sentar, a minha cabeça estava um turbilhão, pensava nas milhares de coisas que poderiam ter acontecido aquele homem e minha mente já tinha criado algumas teorias para aquela tamanha tristeza. Até que percebi sua presença ao meu lado. Ele me olhou e disse.

㇐ Não me leve a mal, moça! Sei que não nos conhecemos, mas sinto que és de bom coração e só queria me ajudar. Sei que isso é impossível, mas posso tentar te ajudar. Posso te contar um pouco da minha vida e espero que depois disso você repense um pouco sobre a sua também. Posso saber qual é o seu nome? 
 
      Respondi que sim. - Mesmo pensando em mentir - E disse em seguida: "Mônica."

㇐ Prazer, Mônica! O meu, um dia, já foi Gilberto. Mas hoje, nem eu mesmo sei. Sua parada está distante? 

      Acenei com a cabeça, sinalizando que sim e ele prosseguiu.

㇐ Nasci no dia 01 de janeiro, um dia de renovação, esperança e grandiosidade. E meus pais sempre fizeram questão de me lembrar disso. Tive a sorte e o azar de nascer em uma família com boas condições, onde tinha tudo que queria e na hora em que queria. E isso foi me acostumando mal. Todo ano era presente para passar de ano na escola, por ter tirado nota boa, por ter arrumado o quarto, por ter tratado bem a professora ou os meus pais. A cada atitude boa que eu tinha uma recompensa era me dada. E ao invés de me incentivar a fazer cada vez mais coisas boas, isso foi me enjoando. Eu estava cansado de ser o menino bonzinho e ganhar presentes. E aos meus 13 anos, queria saber o que aconteceria se eu não fizesse nada de certo. Comecei a gazear as aulas, a não estudar para as provas, a desrespeitar meus pais, professores e pessoas mais velhas. Comecei a beber e depois de um tempo a fumar. Chegava em casa e encontrava minha mãe com os olhos fundos de tanto chorar, as noites presenciava as brigas dela e do meu pai se questionando de quem havia sido a culpa do filho tão amado ter se tornado o que se tornou. Uns diziam que era culpa da adolescência e que essa fase iria passar. E passou. Depois de uns 7 anos nessa vida de drogas, bebidas e rebeldia a morte da minha mãe fez com que eu acordasse para vida e me tornasse um novo eu. Percebi que durante os anos que antecederam a sua morte foram os anos em que eu mais me afastei dela. Só a via pouquíssimas vezes e quando isso acontecia estávamos brigando. E pude perceber que havia errado quando a saudade do seu olhar na minha infância consumia todos os  meus pensamentos.

      Meus olhos estavam marejados e ele percebendo um pingo de esperança neles pela sua mudança, continuou.

㇐ Mas, ao invés de me tornar alguém melhor, eu só troquei meus vícios. Percebi que meu pai estava envelhecendo mais rápido do que o normal após a perda da minha mãe e comecei a estudar para dar continuidade aos bens da família. Me formei em administração e tomei a chefia da nossa empresa. Ao invés do vício da cocaína ou do álcool, me viciei no trabalho e no poder. Acordar todos os dias sabendo que eu era um homem poderoso e rico, me faziam "feliz" ou eu achava que era felicidade. Conquistei prêmios, dinheiro, mulheres, fama... Tudo que alguém poderia querer. E enquanto isso, meu pai, sozinho, definhava por causa de um câncer de próstata. Minha atitude de maior generosidade foi interna-ló em um asilo, onde por incrível que pareça ele teve mais carinho em 4 anos do que em uma vida ao meu lado. Seu enterro foi luxuoso, o melhor que eu poderia pagar, com honras, pessoas que nem o conheciam e homenagens sem o mínimo de sentimento, inclusive a minha. Achei que sair no jornal como "O homem mais bem sucedido do Estado perde seu alicerce." seria o suficiente para expressar a dor que eu aparentava sentir.

       Acho que nessa hora meu rosto expressou a repulsão que eu sentira no momento, pois ele deu um riso sem graça e continuou.

㇐ Eu sei, eu entendo o que está se passando pela sua cabeça. E tenho certeza que esse sentimento de reprovação só irá aumentar. Após perder toda a família que eu conhecia, achava que estava na hora de começar a minha. De encontrar alguém para me casar e formar uma família. Mas como isso iria acontecer se todos os meus contatos com mulheres duravam apenas uma noite, no máximo duas ou três, se valesse realmente a pena?! Eu não fazia ideia. Mas comecei a procurar e do dia para noite me tornei o solteiro mais cobiçado de onde morava. Após uns 3 meses, eu estava assinando os cheques para o casamento com uma mulher escolhida a dedo, linda, loira, gostosa e burra. Que iria depender de mim para tudo, inclusive financeiramente. Não sentia amor, paixão, ternura ou coisa parecida. Era só um tesão que eu julgava suficiente para um casamento. Depois de uns 6 meses de casado, percebi que não era. E comecei a trai-lá a cada final de semana com uma prostituta diferente. Minha infelicidade, estava estampada a cada gole de whisky que eu dava durante o dia. Meu poder já não me satisfazia. Meu vício em pó ou álcool também não. Nem o prazer, me dava mais prazer. E foi aí que descobri a gozo em jogar. Em apostar o meu dinheiro em algo incerto e instigante. E assim eu adquiri mais um vício.

     Minha parada se aproximava, porém, eu queria ouvir o final daquela história e o motivo de tamanha tristeza em seu olhar. Lhe disse que minha parada estava chegando e ele sugeriu um café para o termino da história. Aceitei, afinal, suas palavras me seduziam para o fim dessa história. Descemos na minha parada e fomos até uma lanchonete que tinha por perto. Sentamos e ele avançou.

㇐ Se você está atenta a história, já percebeu que eu passei a minha vida saindo e entrando em vícios, não é? E foram esses vícios que me tiraram a gosto de viver. Eu nunca tive o gosto de viver, o gosto de ter as melhores coisas da vida. As coisas que dizem ser eternas. Sabe esse meu dinheiro, poder e fama? Que fez com que eu me viciasse no meu trabalho? Fui perdendo aos poucos devido ao vício no jogo. Perdi carros, terrenos, dólares, ações na minha empresa e com o tempo a minha esposa, que também era mantida devido a isso. Com essa perda, meu vício em mulheres caras foi baixando o nível e me vi sem dinheiro, sem esposa e com HIV. Meu vício em pó e álcool só aumentaram os sintomas dessa doença. E hoje, antes de entrar naquele ônibus apenas com o dinheiro da passagem, estive em um hospital público onde me disseram que eu teria no máximo 4 meses de vida, me disseram para aproveitar com as pessoas que eu amava, me disseram para abraçar os meus filhos e beijar a minha mulher. Me disseram para viver. E essa tristeza em meu olhar é justamente por isso. Por não ter tido uma vida. Por não ter tido momentos bons para me recordar. Por não ter tido um amor para chorar. Ou um filho para acalentar. Minha tristeza é por ter desperdiçado essa minha curta estádia para colecionar pessoas e coisas. Não sei dá sua vida, não sei o que fazes, quem ama, quem tem raiva. Mas, eu vi em seu olhar algo que eu nunca tive nos meus, bondade. E isso me deu uma vontade imensa de deixar apenas um legado nessa terra, um conselho de um sábio que só descobriu a sabedoria quando não tinha mais nada, nem mesmo esperança. Viva! Não ligue para vícios, estereótipos ou status. Siga só o seu coração e se o seu coração for tão cego como o meu, olhe para o coração dos outros. Para o coração daqueles que vivem, que têm amor, família, paz... felicidade.

      Naquele momento, minhas palavras haviam sumido e minha cabeça tentando processar tudo que ele tinha me dito. Enquanto eu ficava parada, ele se levantou, agradeceu pelo café, me desejou uma boa vida e foi embora. Hoje, eu compartilho a sua história para que outras pessoas também mude seus atos e suas vidas, assim como eu. Eu escrevo a história desse homem para aumentar um pouco o seu legado nessa terra, para que a sua vinda não tenha sido totalmente em vão. 

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1 comentários

  1. Ah, Larissa. Tudo bem?
    Eu não tenho mais o que dizer sobre seus textos. Sinto que tudo o que poderia comentar, já disse. Mas mesmo assim vou fazer um breve comentário sobre esse texto em especial. Gostei bastante do texto, da forma como você me envolveu, através de suas palavras regadas de sensibilidade.
    No decorrer da vida iremos encontrar, conhecer e até mesmo criar vínculo com pessoas que vão nos mostrar o quanto devemos dar valor a vida. E, por mais que seja algo tão dito por muitos, é sempre bom ler algo relacionado ao assunto. Afinal, cada um coloca um pouco de si em seu texto. Agradeço pela reflexão. Pela forma como me fez ver o quanto preciso valorizar bem mais a dádiva que é viver.

    Até mais. http://realidadecaotica.blogspot.com.br/

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